domingo, 9 de novembro de 2008

O homem pela metade

Ele nunca dizia tudo, apenas a metade. Interrompia as frases com uma expressão distante e os olhos fixos em qualquer coisa: a TV, um cachorro,uma mosca. O que eu sabia dele era uma série de frases incompletas do tipo “morei lá uns...” , “saí, sim, acho, mas ela...”, “foi quase nada”. Eu fazia sempre uma cara boquiaberta, mas ele me dizia com um ar compreensivo:“você é tão ...” Nem o próprio nome ele me disse inteiro. Isso tudo foi me
tirando do centro. Já não pensava em trabalho, amigos, família; só nele.
Mesmo não sabendo que aquilo era um quebra-cabeça, eu comportava como estivesse num campeonato internacional do gênero. Catava tudo que ele deixava cair: chiclete, palavrão, cheiro estranho, fiapo no dente. Nada me passava despercebido. Essa era a minha luta para me adaptar àquela segura - mas infelizmente fragmentária –, complexa – mas infelizmente inacessível - e fascinante mente masculina. “Você é tão lenta” era isso que eu supunha que ele não completava. “Você é tão ansiosa” – isso eu já sabia - aprendi isso com meus os outros namorados. Tinha que compensar minha lentidão, minha ansiedade. Que outra coisa podia oferecer senão meu carinho, meu afeto e minha presença física e espiritual abundante? Era uma mensagenzinha carinhosa, um bilhetinho perfumado no bolso, um telefonemazinho. Tudo bem
pequenininho para não assustar o príncipe.

Mas, infelizmente, mesmo assim, quanto mais eu me entregava mais ele ia se ausentando. Foi ficando cada vez mais distante. As migalhas que deixava cair não formavam mais nem uma sílaba. Eu entrei em pânico. Mandei flores, fiz um jantar surpresa com vinhos caríssimos, tentei uma posição erótica acrobática que me rendeu uma hérnia e ele, nada. Eu que já fazia terapia,ioga e spinning, resolvi buscar ajuda na ciência. Procurei uma taróloga.
Ela, seca, sorriu quando olhou para as cartas: você está uma pilha de nervos. Não sei se foi por causa do barulho agudo das minhas unhas tilintando na mesa ou se ela tinha lido mesmo nas cartas. O que eu faço? – gritei. Ela, ríspida: minha filha você não está mais entre nós.

Corri para casa, tentei ligar para alguém, mas me lembrei que havia abandonado os amigos. Abri a janela – e foi o suficiente. O meu adorado reticente estava enlaçado na minha vizinha de prédio. Quando ele viu que eu estava mais uma vez boquiaberta olhando para a cena. Ele fechou parcialmente a janela. Parcialmente, ouviram? Aquilo de tudo pela metade acabava comigo. Pela fresta, eu tentei xingar a vizinha, a mãe dele, quem fosse, mas era impossível competir com Mariah Carey.
Desci descabelada, descalça, de robe, e tentei invadir a portaria do prédio da pilantra. Seu Antônio, o porteiro, que me conhecia, foi de uma gentileza dessas que podem matar uma moça educada: segurou-me firme pelos pulsos e gritou: Dona Valdívia, o homem é casado. Casou ontem. Não faz barraco que a senhora é a outra.
Seu Antônio já tinha parado de me sacudir. Mas eu continuava me sacudindo toda e fui assim me sacudindo pela rua afora sem saber como encontrar minha querida portaria. Minhas vizinhas bondosas na janela gritavam: cuidado com o bueiro, Valdívia, cuidado com o bueiro. Aí, eu não agüentei, sentei no meio-fio e implodi.

Gentilmente enviado por:

Valdívia

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